por Rodrigo Savazoni.
O Rio Acre nasce no Peru e deságua no Rio Purus, no Amazonas. A cerca de 300 quilômetros de sua foz, ele cruza a cidade de Rio Branco, capital do Estado do Acre. Durante boa parte do ano, é um rio navegável. Nas imediações da calatraviana Ponte dos Pedestres, uma edificação que cruza o rio bem em frente ao Mercado Municipal de Rio Branco, embarcações estacionadas são usadas para festas e encontros. Foi no Flutuante, uma dessas embarcações, no dia 12 de outubro de 2007, sexta-feira, que tive minha primeira conversa sobre o Circuito Fora do Eixo.
Eu estava no Acre para dar aulas de novas mídias no curso de cinema organizado na Usina de Arte João Donato, com coordenação do cineasta Maurice Capovilla. Meses antes o jornalista mineiro Israel do Vale falara-me com entusiasmo do Espaço Cubo Mágico de Cuiabá e de Pablo Capilé, que estavam reorganizando a cena musical da capital do Mato Grosso com o uso de moedas sociais e um claro direcionamento político e contestatório. “Você tem de conhecê-los”, disse o Isra e eu fiquei com isso na cabeça.
Soube que Capilé estava no Acre e pedi a Walquíria Raizer, minha cicerone acriana cujo primeiro livro de poemas estava sendo distribuído pelo Fora do Eixo, que me apresentasse o Pablo. Na noite que nos vimos pela primeira vez seria o lançamento do Festival Varadouro, com show de algumas bandas, entre elas uma chamada Filomedusa, liderada pelo secretário de cultura estadual e baixista Daniel Zen. Zen era também o criador do coletivo afiliado ao Fora do Eixo no Acre e o Varadouro já era um dos principais festivais do nascente circuito e integrava a Associação Brasileira de Festivais Independentes (Abrafin), duas organizações que surgiram no final de 2005 praticamente simultaneamente e foram impulsionadas no Festival Goiânia Noise, de Fabrício Nobre.
Como meu livro narra, Abrafin e Fora do Eixo são organizações contemporâneas voltadas à reorganizar a música independente brasileira, uma reunindo festivais de música jovem e a outra coletivos de regiões afastadas do eixo Rio-São Paulo. Duas forças provenientes das franjas do eixo onde se formatam as tendências hegemônicas de comportamento e consumo cultural no país.
Em 2007, quando daquela minha primeira conversa sobre o Fora do Eixo, a rede era uma potência latente. A primeira reunião geral da entidade tinha ocorrido um ano antes e a adesão mais forte ainda estava concentrada nas quatro cidades que se articularam pioneiramente para sua criação: Cuiabá, Uberlândia, Londrina e Rio Branco. A rede estava ainda distante de ser essa força motriz da cultura brasileira com tantas realizações e polêmicas acumuladas. Mas passei a acompanhá-la com entusiasmo, justamente por vislumbrar em seus agentes um repositório de ousadia e competência.
Um mês depois de nosso encontro no Acre, Capilé foi a Brasília para realizar suas primeiras reuniões com o Governo Federal, acompanhado de Talles Lopes, de Uberlândia, outro produtor fundador da rede. Foram os dois que, no final de 2005, em uma conversa durante o festival Jambolada, decidiram pelo nome Fora do Eixo. Em Brasília, tinham agendadas reuniões com a Secretaria Nacional de Economia Solidária e ajudei-os agendando encontros no Ministério da Cultura. Faz sete anos que nos encontramos pela primeira vez e passamos a cooperar.
Narro esses elementos não para identificar qualquer papel que eu tenha na construção do Fora do Eixo. O que quero é esclarecer que este livro começa naquele momento, naquela conversa no rio Acre, em que pedi uma cerveja e servi meu copo e o de Pablo. Alguns anos depois eu perceberia que Pablo não gosta de cerveja e lembrei-me que naquela noite eu bebi outras tantas e ele apenas bebericou do seu copo enquanto falava com o entusiasmo que lhe é peculiar sobre seus planos para a “cena” cultural das cidades em que estavam atuando.
Acredito que em nenhum momento minha proximidade me impediu de lançar um olhar objetivo sobre o que tenho visto, ouvido, lido e debatido em relação ao Fora do Eixo. Sou próximo, mas não sou integrante do Fora do Eixo. E na posição em que me encontro, opero como observador privilegiado, o qual influencia e é influenciado, numa dinâmica qualificada de “pensar com”, e não somente de “pensar sobre”. Mas que ninguém espere de mim algo feito sem engajamento.
“Os Novos Bárbaros – A Aventura Política do Fora do Eixo” busca estabelecer um olhar panorâmico sobre o FdE. Seu objetivo específico é compreender a guinada política desse agrupamento, que passa de uma rede de coletivos culturais para uma organização política de expressão nacional e internacional, como o recente processo eleitoral brasileiro demonstrou, tendo o Fora do Eixo apoiado ao lado de outros movimentos sociais a reeleição de Dilma Rousseff.
Meu livro não é um romance, não é uma narrativa, não é nem sequer uma obra prioritariamente analítica. E acredito que o FdE mereça que sobre ele se escrevam romances, narrativas épicas e análises argutas. Acho que o que fiz foi descrever uma onda em movimento. Apenas produzi uma fotografia momentânea desse objeto mutante que é o Fora do Eixo. Beneficiei-me sim do longo convívio com o agrupamento que foi meu objeto. Mas busquei também dialogar com as críticas que existem e que são parte, eu diria, da complexidade desse fenômeno.
De tudo, o que fica, acredito, é o rigor e a honestidade intelectual. E uma certeza: se o Fora do Eixo não existisse, seria legal que alguém o inventasse.