Moeda do Fora do Eixo ilustra desafios de ‘alternativas’ ao dinheiro

Publicado originalmente no site da BBC.

por Luís Guilherme Barrucho

Utilizado como meio de pagamento pelos coletivos da rede Fora do Eixo nas transações financeiras entre o grupo e seus associados, o chamado “cubo card”, um tipo de moeda “social” ou “complementar”, revelou os desafios de um sistema monetário alternativo à moeda oficial.

Esses tipos de moedas são normalmente usadas por coletivos ou comunidades para impulsionar a economia de setores específicos.

Os cubo cards, rebatizados posteriormente de Fora do Eixo cards, foram criados em 2004 pelo grupo cultural mato-grossense Espaço Cubo, embrião do Fora do Eixo, que reúne mais de 200 coletivos espalhados pelo país e hoje tem sede em São Paulo.

A rede ganhou visibilidade após a revelação de que financia as atividades do grupo Mídia Ninja, acrônimo para “Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação”, que vem transmitindo em tempo real, via internet, as manifestações no Brasil nos últimos meses.

O propósito era que a moeda substituísse as transações realizadas em real, promovendo a economia solidária entre os participantes do grupo ─ formado, em grande parte, por artistas da cena cultural independente.

O meio de pagamento também se destinava a suprir uma deficiência interna do coletivo. Alegando não ter dinheiro em caixa para remunerar seus parceiros em moeda corrente, a rede acenava com uma proposta: pagaria em cubo cards o valor equivalente em reais, na paridade de 1 para 1. Os cubo cards poderiam, então, ser trocados por produtos ou serviços do próprio coletivo ou de demais associados.

Para dar fôlego ao sistema, os coletivos que compunham o Fora do Eixo também tinham liberdade para emitir suas próprias moedas. Por exemplo, o braço do grupo em São Carlos, no interior paulista, criou uma moeda chamada marciano.

“Nessa hipótese, uma banda que viesse tocar aqui (na casa que funciona como sede do coletivo), não seria remunerada em reais, mas em cubo cards ou em marcianos, que poderiam ser convertidos em outros serviços, prestados por nós ou por nossos parceiros, a partir de uma tabela de equivalências”, explica à BBC Brasil o músico Juliano Parreira, responsável pela área de planejamento do Fora do Eixo de São Carlos e que mora na casa coletiva.

“Imagine uma banda que ganhe 400 cubo cards por um show feito em nosso espaço. Ela poderia trocar esse montante pela gravação de um videoclipe, que seria realizado por nós ou por demais parceiros. No primeiro caso, o crédito que a banda tinha conosco seria zerado. No segundo, a “dívida” passaria de mãos, e o novo credor (o prestador do serviço de gravação, que receberia os 400 cubo cards) daria continuidade ao sistema de trocas”, exemplifica.

Parreira acrescenta que a negociação em moeda alternativa ocorre normalmente apenas nos casos em que a remuneração em real não é possível. “Sempre que conseguimos dinheiro de patrocínio, tentamos pagar as bandas em moeda corrente.”

Ele conta ainda que os credores do Fora do Eixo poderiam optar por ficar com o dinheiro alternativo em cédulas de papel, impressas pelo próprio coletivo, ou com um “crédito” no sistema de planilhas financeiras da rede. Nesse caso, a movimentação da dívida é acompanhada por ambas as partes por meio de um arquivo compartilhado na internet.

 

Por fim, quem já tem cubo cards pode tentar posteriormente trocar a moeda por reais, caso não se interesse pelo sistema de trocas por serviços.

 

Críticas

 

Mas os críticos do sistema dizem que não é assim que ele funciona na prática. Desde a entrevista de Pablo Capilé, fundador do Fora do Eixo, ao programa Roda Viva, da TV Cultura de São Paulo, multiplicaram-se na internet queixas de antigos parceiros do grupo, que afirmam não ter conseguido trocar a moeda alternativa por reais ou por serviços prestados pelo coletivo e seus associados.

A reportagem da BBC ouviu ex-associados do Fora do Eixo sobre o funcionamento dos cubo cards. Eles disseram que não foram vítimas de calote, mas afirmaram que tinham dificuldade de trocar a moeda complementar por reais ou por outros serviços oferecidos pelo grupo.

Questionado sobre as críticas, Parreira reconhece que a moeda não tem lastro (ou seja, para cada cubo card emitido, não há o equivalente em reais guardado), mas afirma que “tudo era feito às claras, com o consentimento de todos os envolvidos”.

“A troca por reais não é nossa primeira opção, pois, do contrário, não haveria motivo para a criação de uma moeda complementar. Mas nunca deixamos de pagar ninguém”, diz.

 

Escambo

 

Fernando Nogueira da Costa, professor de Economia da Unicamp, ressalta que o sistema adotado pelo Fora do Eixo não é novo.

“Trata-se de uma evolução dos clubes de troca ou feiras de troca solidária. Nesses mercados, os pequenos empreendedores locais disponibilizavam seus produtos para o comércio, utilizando para isso as moedas sociais”, afirma.

“Dessa forma, gera-se um exclusivismo comercial que beneficia o desenvolvimento local e a inclusão social, pois os envolvidos só poderão gastar a moeda dentro de limites preestabelecidos.”

A economista brasileira Heloisa Primavera defende a iniciativa do Fora do Eixo, que classifica como um “projeto de soberania política”. Primavera esteve envolvida na criação de várias moedas sociais e tem ligações estreitas com o grupo fundado por Pablo Capilé.

“O objetivo desses jovens é redefinir o papel que o dinheiro possui em nossa sociedade. Eles conhecem a fundo os riscos dessa iniciativa. O cubo card é uma ferramenta para construir um sistema de vida que desafia o capitalismo e a economia de escassez que vivemos”, diz Primavera.

Os especialistas concordam, no entanto, que a premissa básica desse tipo de sistema é a confiança entre os envolvidos.

“Sem ela, a moeda não dá certo. Em primeiro lugar, é preciso que ambas as partes estejam de acordo com a forma em que a transação acontecerá, ou seja, sem reais. Além disso, a tabela de equivalências, isto é, como os créditos poderão ser trocados, precisar estar visível e acessível a todos”, afirma Nogueira da Costa.

 

Bancos comunitários

 

No Brasil, o Banco Central (BC) não se responsabiliza pela emissão de moedas sociais.

ePorém, o BC dá especial atenção àquelas emitidas por bancos comunitários espalhados pelo Brasil. Hoje, há 103 deles, cada qual com a sua respectiva moeda. Juntas, elas movimentam R$ 6,5 milhões por ano, dos quais R$ 6 milhões em crédito produtivo e R$ 500 mil em moedas sociais.

O acompanhamento é feito por relatórios enviados pelo Instituto Palmas, com sede em Fortaleza, à autoridade monetária.

O instituto foi criado em 2003 a partir de uma experiência bem sucedida – e pioneira no Brasil – de uma comunidade pobre na periferia da capital cearense, o Conjunto Palmeira, que decidiu substituir o real por uma moeda social, a palmas.

Diferentemente dos cubo cards, as moedas negociadas por essas instituições têm lastro, ou seja, podem ser trocadas por reais a qualquer momento nos bancos comunitários. A reserva de valor é mantida a partir de recursos públicos.

O sistema também segue uma lógica diferente da do coletivo, como explica Joaquim de Melo Neto, coordenador do Instituto Palmas.

“Emprestamos em reais aos comerciantes e aos consumidores em palmas. As pessoas se beneficiam ao receberem descontos dos comerciantes ao usarem a moeda social para fazerem compras”, explica.

“Como as palmas só podem ser usadas dentro da comunidade, os donos dos estabelecimentos aumentam suas receitas, gerando mais emprego, o que cria um ciclo virtuoso que favorece o desenvolvimento local”, acrescenta.

Embora apresentem maiores garantias, as moedas sociais emitidas por bancos comunitários tampouco estão imunes a riscos.

Muito populares na Argentina durante a década de 90, elas praticamente sumiram do país após a crise econômica de 2001.

“O bom funcionamento desse sistema alternativo depende de muitos fatores. Como não há garantia financeira do BC, regras do jogo têm de ser muito claras. Do contrário, a chance de os envolvidos se frustrarem é grande”, conclui Nogueira da Costa.

 

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