Fora do Eixo, Fora do Centro, Com a Periferia, Fora da Eurocentria

O Duelo de MC's acontece todas as sextas-feiras debaixo do viaduto Santa Teresa. Exemplo de ocupação de espaços públicos em Belo Horizonte,  organizado pelo coletivo Família de Rua.


Os parceiros do Coletivo Família de Rua e seu Duelo de MC’s, que acontece todas as sextas-feiras debaixo do viaduto Santa Teresa, BH-MG

Por Ney Hugo*

É importante antes da reflexão em si, expormos que entendemos que o vocábulo periferia remete, claro, às diferenças de classe, mas também aos preconceitos geográficos do “eixo”, que diz que o Acre não existe; linguísticos, que colocam o colóquio do sudeste como o modelo da dicção perfeita; e histórico, que reproduz o eurocentrismo com o qual tanto saquearam os países colonizados. O Fora do Eixo, que surge em localidades que geralmente passam despercebidas aos outros estados “desenvolvidos” do Brasil, é capiau, caipira, rústico e interiorano, e talvez por isso uma bem sucedida alternativa ao main stream operante nos grandes centros. Há vários elementos nessa disputa, muitos deles detalharemos mais ao longo do artigo, mas que vão desde a ridicularização do sotaque à subestimação das tecnologias do precariado.

Falando rapidamente sobre o perfil das pessoas do FdE, existem muitas pessoas de origem na classe média, algumas de periferia, e muitos negros, em uma rede bastante diversa, o que repete uma relação histórica, que envolve a relação do rock com o rap, de intelectuais com movimentos de base e etc. Por exemplo, Paulo Freire era de classe média. Mas vai dizer que a Educação Biocêntrica e a Pedagogia do Oprimido não são de periferia?  Me situando dentro desse perfil e pessoalizando a questão, faço minhas palavras que ouvi certa vez do grande GOG: “não passei fome, mas meu pai passou”.

Umas das grandes experiências do Fora do Eixo é a radicalização na vivência coletiva entre aqueles que tem dedicação integral, ao ponto das relações serem totalmente horizontalizadas, desde a gestão política e executiva, passando pelos processos de empoderamento e chegando ao caixa coletivo, onde ninguém recebe salário, tampouco quantias divididas em partes matematicamente iguais, mas sim existe um fundo coletivo à disposição de todos para necessidades básicas coletivas e individuais.

 A relação do Fora do Eixo com a periferia se desenvolve desde o início, antes mesmo de se configurar como uma rede, um movimento, desde quando ainda era “apenas” um circuito cultural. Um dos coletivos pioneiros, o Espaço Cubo, em Cuiabá, já realizava shows e outras atividades em parceria com artistas/ativistas do hip hop, no início dos anos 2000. De um grupo de rap chamado C4, o Cubo começa a estreitar as relações com esse movimento a partir do rapper Linha Dura, ainda hoje um dos grandes parceiros do FdE. No decorrer dessa trajetória, Linha Dura se articula com Celso Athayde e assume a empreitada da sucursal cuiabana da CUFA – Central Única das Favelas.

Em determinado momento, em meados de 2006 a parceria se estreitou ainda mais a ponto de se tornar cotidiana, intrínseca. Espaço Cubo e Cufa dividiam o mesmo teto, a mesma energia elétrica, a mesma internet, os mesmos estúdios de ensaio e gravação na célebre sede conjunta na Avenida Presidente Marques, 240. Entre as ações conjuntas estavam as ações de hip hop no Festival Calango, formação de DJs na célebre Semana da Música (que também trazia à cidade instrumentistas como Arthur Maia, Celso Pixinga, Thiago do Espírito Santo, entre outros), a realização do Festival Consciência Hip Hop, entre outras inúmeras ações.

GOG em Cuiabá, recebendo o Prêmio Consciência Hip Hop (2008)

GOG em Cuiabá, recebendo o Prêmio Consciência Hip Hop (2008)

As ações no âmbito do circuito cultural, em especial, da música, sempre foram uma porta escancarada para a inserção da periferia. Foram muitas as bandas de bairros afastados e em zona de risco que participaram de festivais, turnês e inúmeros shows para centenas (algumas vezes milhares) de pessoas. Esse protagonismo era possibilitado através das trocas de serviços viabilizadas pelo Cubo Card, moeda solidária através da qual as bandas tinham acesso a ensaios, gravações, consultoria técnica e estética, aula de instrumento, discos, dvds, revistas, e até mesmo restaurante, vestuário e tatuagem.

Calango na Escola

Calango na Escola, Cuiabá 2010

Outro processo que aproximava jovens em situação de risco era o projeto Imprensa de Zine, desenvolvido nas escolas da rede pública, com o caráter de democratização da comunicação e da cultura através de veículos alternativos e atividades artísticas. Muitos dos que passaram pelo projeto adentraram a cena como músicos ou produtores de banda, zineiros, blogueiros, exercitando a autonomia e auto-gestão, descobrindo outras perspectivas de trabalho e vida muito além do salário-consumo.

calangaonaescola

Imprensa de Zine

A partir de 2011, com a chegada da Casa Fora do Eixo SP, alguns disseram levianamente que era o “Fora do Eixo no eixo”, como se na maior cidade da América do Sul não existisse periferia. Ali começamos a relação com a União Popular de Mulheres, fundada em 1987 no bairro Maria Sampaio (zona sul), com o papel de “lutar pela emancipação da mulher e pela igualdade nas relações sociais”. Contribuímos profundamente com a criação da Agência Popular Solano Trindade (que leva o nome de um dos maiores poetas negros do Brasil que construiu seu legado na periferia de SP), que tem o objetivo de fomentar a cultura popular através da viabilização financeira da produção artística da periferia, construindo estratégias de autofinanciamento e sustentabilidade econômica. Uma das alternativas para viabilizar esse processo é uma moeda solidária tal qual o Cubo Card, chamada “Solano” (Banco Comunitário União Sampaio), que segue gerando autonomia e renda para a comunidade, em diferentes aspectos, seja para atender as necessidades básicas, seja para ampliar as possibilidades de sustentabilidade de projetos artísticos/culturais.

Da Zona Sul para a Zona Leste, fomos uma das organizações convidadas a fazer parte do projeto Jovens Urbanos, através do qual assessoramos jovens da ZL a produzirem ações culturais. No distrito de São Miguel trabalhamos com grupos em dois bairros, Vila Mara (relativamente mais estruturado) e Jardim Lapenna, que até poucos anos atrás era uma “invasão” e ainda hoje sofre as consequências da marginalização e criminalização. Ali foram produzidos dois eventos bastante marcantes para esses bairros: a Feira Cultural Olhos Abertos e o Festival Novos Talentos. Jovens que entenderam outra ótica de trampo, que aprenderam que a faculdade pode ser importante mas não é o único caminho, sacaram que podem sistematizar as trocas solidárias e gerar valores reais e até renda a partir dessa dinâmica, e assimilaram o poder de comunicação das redes sociais, ao conseguir mobilizar o bairro em torno de um evento comunitário. O jovem Caique, do Festival Novos Talentos, há poucos dias publicou um relato de como essa experiência transformou a maneira como vê o mundo hoje.

Em São Paulo também nos aproximamos ainda mais do movimento hip hop estreitando relações com Emicida, Criolo, Ganja Man, Zafrica Brasil, Funk Buia e tantos outros. Hoje, Linha Dura, rapper cuiabano que administrava a mesma CUFA com quem dividíamos espaço em Cuiabá, articula a Vida Loka, construindo uma rede nacional de hip hop conectadas com as Casas FdE.

A partir da Casa FdE Sul, nos conectamos com a Nação Hip Hop Brasil, que tem entre a sua gama de trabalhos a articulação na câmara federal da Lei do Hip Hop (projeto de lei do Dep. Romário), que visa transformar em ação de Estado no Brasil as políticas públicas para o setor. Com a Nação Hip Hop Brasil também realizamos conjuntamente em Porto Alegre o projeto Sarau Hip Hop com Mário Quintana, que ocupa a Casa de Cultura que leva o nome do poeta, gerando experiências riquíssimas em eventos cheios de ritmo e poesia.

Sarau Hip Hop com Mario Quintana, Porto Alegre-RS

Sarau Hip Hop com Mario Quintana, Porto Alegre-RS

Foi também através do suporte da Nação Hip Hop Brasil que conseguimos colocar em tramitação no RS a Lei Griô, somando o sul do Brasil ao Nordeste, onde também tramita a lei nos estados de Paraíba e Bahia.

A Lei Griô parte da Ação Griô, com quem começamos a nos relacionar de maneira mais orgânica a partir de 2012, e que tem como missão “potencializar a educação, a cultura e o desenvolvimento sustentável de comunidades de periferia e rurais do Brasil para o fortalecimento da identidade e ancestralidade do povo brasileiro e a celebração da vida” e cujo centro de referência se localiza na cidade de Lençóis, a 410 km de Salvador (BA), com uma população de aproximadamente 10 mil habitantes, em sua maioria afrodescendentes, onde 49,8% vive abaixo da linha da pobreza (renda per capta familiar menor que 1/2 salário mínimo, IBGE 2000), principalmente nas comunidades rurais, isoladas geograficamente. Tombada como Patrimônio Histórico Nacional desde 1974, a cidade teve como base econômica até 1990 a extração de diamante.

A escassez do diamante deflagrou uma crise econômica e social que se intensificou com o fechamento legal da atividade do garimpo. Os investimentos econômicos foram direcionados para grandes e médios empreendimentos turísticos, com roteiros de ecoturismo que não incluem a história e a cultura do povo. Foi neste contexto que as escolas e as comunidades demandaram projetos que costurassem o fio da história de Lençóis. Porém a dissociação cultural entre escolas e suas comunidades, entre as gerações de tradição oral e as novas gerações de tradição escrita, forma uma célula de uma questão nacional.

Há uma carência de práticas integradoras de ensino e aprendizagem nas universidades e nas escolas que incluam a vivência afetiva e cultural das crianças, adolescentes e jovens brasileiros. Práticas que os vinculam a si mesmos e a sua ancestralidade, para que sejam protagonistas de uma história e de uma educação que garantam o fortalecimento de sua identidade para melhoria da qualidade de vida.

Para isso é criada a Pedagogia Griô para mediar a sistematização das práticas e saberes de tradição oral, bem como seus conceitos chaves e seus processos de transmissão e circulação que são reinventados para dialogar com o saber formal nas escolas. Oferece uma iniciação pedagógica da escola e de griôs aprendizes para integrar mito, arte, ciência, história de vida e todos os saberes e fazeres tradicionais da comunidade. Tem como referências pedagógicas – educadores e pesquisadores brasileiros da educação biocêntrica, da teoria de Paulo Freire, da educação para as relações étnico raciais positivas, e dissertações acadêmicas que já versam sobre a própria pedagogia griô.

Na maior parte do tempo, nas escolas nos vemos sentados de costas uns para os outros, em filas, sirenes de polícia chamando para a merenda, cores sem vitalidade, livros sem heróis de nossa cultura, sem arte e significado da vida; a imobilidade de horas sentados nas cadeiras com a caneta em punho ouvindo monólogos de sobrevôo sobre uma realidade abstrata e estranha;  nomes chamados para registros de presenças em cadernetas com notas que não falam da identidade de ninguém, em grupos por idade, por sexo, estereotipados e estigmatizados entre quem é “o inteligente” ou ”o esforçado”, entre quem obedece e quem será bandido, subempregado ou patrão; o conhecimento quebrado em disciplinas, preso em grades curriculares, decorado entre quatro paredes, dissociado da cultura local e os saberes da comunidade folclorizados. São com esses rituais e símbolos que boa parte das escolas pretendem ensinar a ser gente do mundo, gente do Brasil, ou somente reprodução da falta de sentido de viver, da doença humana institucionalizada. Como artistas do invisível, reinventou-se o griô africano, convidando a comunidade e escola para a roda da vida, um ritual onde passado e futuro se encontram no presente pleno de aprendizagem, contando mitos e símbolos que existem no inconsciente coletivo de nossas raízes afrobrasileiras. (Trecho em itálico extraído de “Pedagogia Griô”, Lilian Pacheco).

Toda a simbologia de um afrodescendente brasileiro presenteando um representante do povo originário com um berimbau. De Mestre Alcides para Paulinho Bororo no curso de extensão Griô na USP.

Toda a simbologia de um afrodescendente brasileiro presenteando um representante do povo originário com um berimbau. De Mestre Alcides para Paulinho Bororo no curso de extensão Griô na USP.

Nesse contexto, fomos convidados pela Ação Griô para estabelecer um elo de intensificação dessa conexão da Pedagogia Griô com o FdE: um griô aprendiz fora do eixo, um(a) aprendiz que possui identificação afetiva e cultural com os/as griôs, mestres e mestras de tradição oral, e que vai se formando e adquirindo uma linguagem e pedagogia para mediação do diálogo entre o saberes, fazeres e práticas pedagógicas de tradição oral e os conteúdos e práticas pedagógicas da educação. O Griô é todo(a) cidadão(ã) que se reconheça e seja reconhecido(a) pela sua própria comunidade como herdeiro(a) dos saberes e fazeres da tradição oral e que, através do poder da palavra, da oralidade, da corporeidade e da vivência, dialoga, aprende, ensina e torna-se a memória viva e afetiva da tradição oral, transmitindo saberes e fazeres de geração em geração, garantindo a ancestralidade e identidade do seu povo. Meu nome foi indicado como Aprendiz Griô FdE. É uma tremenda honra e responsabilidade ter sido reconhecido pelas comunidades do Fora do Eixo e da Ação Griô como o indivíduo responsável por esse elo.

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Aprendiz Griô FdE com indígenas Xavante, Bororo e Iny (Karajá)

Mestre Aderbal Ashogun, certa vez disse que as Casas Fora do Eixo são como um “Terreiro 2.0”, fazendo uma alusão à similaridade das relações horizontalizadas, diversas e coletivas presentes tanto na rede quanto nos povos de terreiro (o Mestre voltou ao comparativo essa semana). A expressão por ele cunhada ilustra a rica e intensa troca que vivemos ao nos depararmos frente a frente nesse processo de re-conhecimento de um Brasil profundo, um Brasil que é o maior país africano fora da África. Um Brasil que é cada vez mais digital, em seu sentido tecnológico e metafórico.

Da mesma maneira que entendemos a periferia de São Paulo como um exemplo do “fora do eixo no eixo”, entendemos também que a relação com a periferia se dá além mar. E um dos grandes momentos dessas tão frutíferas uniões se deu com ativistas de Cabo Verde, a ponto do Ministério da Cultura do país reconhecer a Universidade Livre Fora do Eixo como “instituição cultural científica e pedagógica independente, plataforma de conhecimento livre, de partilha e de inovação” e a credita como “formadora para a área da cultura”, pelo seu caráter de formação livre, além do diálogo e práticas conjuntas com culturas ancestrais afrobrasileiras. Cabe ressaltar que o Cabo Verde é um conjunto de 10 ilhas  no Oceano Atlântico, a 640 km a oeste de Dacar, no Senegal, descoberta pelos portugueses inabitada, se tornou uma das principais rotas Portugal-África-Brasil no obscuro período de colonização e escravidão, do qual sentimos até hoje as duras consequências. Os intercâmbios são infinitos. De vivências FdE no Cabo Verde à forte presença de cabo-verdianos nas Casas FdE e na zona sul de SP com a Agência Solano Trindade, União Popular de Mulheres, Banco Comunitário União Sampaio e etc…

Reconhecimento à Universidade Fora do Eixo (Ministro da Cultura de Cabo Verde)

Reconhecimento à Universidade Fora do Eixo (Ministro da Cultura de Cabo Verde)

Outros grandes elos da rede com a periferia se dão em Belo Horizonte, na parceria com o Família de Rua no “Duelo de MCs”, que ocupa semanalmente o Viaduto Santa Tereza, (no centro de BH), com o melhor das manifestações artísticas do Hip Hop, exemplo de ocupação de espaços públicos em Belo Horizonte, organizado pelo coletivo Família de Rua. E no Rj com o Afroreggae, que inclusive nos concedeu o Prêmio Orilaxé, uma homenagem às pessoas que se dedicam a mudar o mundo.

AfroReggae gravando o Conexões Urbanas na Casa FdE Sul, com Mestres Griô e parceiros

AfroReggae gravando o Conexões Urbanas na Casa FdE Sul, com Mestres Griô e parceiros

Em um outro projeto em parceria com o Afroreggae – no especial sobre o FdE produzido pelo programa Conexões Urbanas, que é exibido no Canal Multishow – vivenciamos um dos momentos mais marcantes da Casa FdE Sul, quando no dia da gravação com o Conexões, recebemos para participação os Mestres Griô Paraqueda e Paulo Romeu, representantes da Alvo, produtora e selo de hip hop, entre outros companheiros negros afrobrasileiros que se identificam com a luta. Num domingo de dia das mães, uma verdadeira comunidade em nossa casa num grande ritual ancestral de contação de histórias. Uma outra história que não a “oficial” acadêmica, uma história da vivência, uma tarde de conscientização e risadas. No ato da entrevista para o Conexões, não falei sozinho no depoimento, mas sim a partir de todas as histórias e reflexões que ocuparam nossas mentes unificadas na tarde, e também a partir de cada um dos presentes que fechavam os olhos no momento da gravação, como que mentalizando e me enviando as palavras.

Grito da Paz

Grito da Paz

Podemos citar inúmeros momentos similares… entre os mais marcantes na memória está o Grito Rock realizado esse ano no Auditório do Ibirapuera. Trata-se de um festival colaborativo realizado há mais de uma década, primeiramente apenas em Cuiabá, se espalhando pra 300 cidades em 30 países, incluindo América Latina, Europa, Oceania e África. A programação do Grito da Paz, realizado no Ibira, com Z’África Brasil, Veja Luz, Zinho Trindade (neto de Solano Trindade) e mais vários, foi um marco quando a periferia em peso ocupou um dos espaços até então inacessíveis ou pouco acessíveis em sua própria cidade.

No palco, entre pickups, microfones e bicicletas, a comunidade celebrava e incendiava o público: “mãos ao alto isso aqui é um assalto, mãos ao alto eu tô roubando sua atenção”.

Mãos ao alto, Ibirapuera

Mãos ao alto, Ibirapuera

O Fora do Eixo desde a sua origem desenvolve na Amazônia ações que buscam o fortalecimento dos processos socio/culturais/ambientais, nessa periferia do país. As construções na região, da mesma forma como nas demais, sempre foi desenvolvida coletivamente. Uma das experiências mais interessantes é a união entre Fora do Eixo, Movimento Hip Hop da Floresta, o povo Paiter Suruí e a Kanindé em Rondônia. Essa relação que mistura diversas lutas, idéias e sentimentos gera uma potência muito grande, seja no desenvolvimento de ações culturais em festivais, seja em campanhas de enfrentamento contra os abusos de madeireiros na região. As trocas de tecnologias sociais desenvolvidas são muito ricas. A sabedoria ancestral dos Suruis, junto com o rap do Manoa, que se entrelaçam com ações ambientais da Kanindé, que atua há mais de 20 anos na região, junto com as atividades do Fora do Eixo, geram um laboratório de formação livre e de produção colaborativa onde todos aprendem nas vivências e compartilham esses processos com diversos outros grupos e pessoas da região.

Nessa cada vez mais orgânica relação com os movimentos de periferia, muitas semelhanças de dinâmica são colocadas por ambas as partes. A coletividade, a solidariedade, a divisão horizontal (seja de comida, empoderamento ou compartilhamento de toda a estrutura e recursos), a confiança, o olho no olho, o sangue no olho, o papo-reto, as soluções a partir do precariado, entre muitos outros elementos…

Em Lençóis, Com Aílton Carmo, capoeirista baiano que viveu Besouro no cinema

Em Lençóis, com Aílton Carmo, capoeirista baiano que viveu Besouro no cinema

Foi em Lençóis, no encontro de planejamento da Universidade Griô, que conheci as terras de Besouro Mangangá, capoeirista baiano que no início do século XX tornou-se o maior símbolo da capoeira baiana. Quando nasceu, não havia nem dez anos que o Brasil tinha sido o último país do mundo a libertar seus escravos. O mesmo reverenciado por Emicida em “Avua Besoro”, música que tocamos juntos várias vezes nos encontros do Macaco Bong com o rapper e que em um dos versos traz a provocação em resposta a quem vocifera descrédito à periferia. E aqui podemos fazer também nossas as palavras desse verso, ao falarmos a partir de uma rede que surgiu dos rincões do país, do cerrado no centro da América da Sul, à Amazônia e Nordeste: “Cês esperava que nóis roubasse tudo, menos a cena”.

*Aprendiz Griô, gestor da Universidade Livre Fora do Eixo Sul