Passe Livre, FdoE, Black Blocs: mídia

Esbocemos uma tese nem tão nova: as ações portam conteúdos narrativos e informativos; as ações são mídia, e, como diz a regra, implicam em reações, também midiáticas. Se assim for, nenhum ato ocorre sem estratégia nesse sentido. Os protestos de junho e correlatos nos dão três exemplos distintos disso.

O Movimento Passe Livre (MPL) se dispôs no debate público como um tiro: pontual, compacto, específico, não pode ser diluído no jogo de interesses e ponto de vistas que soe ocorrer.

A Mídia Ninja foi por sua vez como uma bomba de efeito moral: sua inserção no campo de atenção das pessoas gerou múltiplos e contraditórios efeitos, o maior deles o vazamento da discussão pela brecha do coletivo Fora do Eixo (FdoE), quando explodiu e implodiu.

Os Black Blocs, enfim, um homem que ateia o próprio corpo em chamas: indefinido e ao mesmo tempo muito bem definido, sem falar por ninguém, sem nem mesmo se preencher de sentido, obrigou a sociedade a formular sozinha os sentidos, em grandes consensos opostos. Mas as metáforas são só metáforas. Vamos aos fatos.

O Vácuo

Os Black Blocs se definem – um momento, os Black Blocs não se definem… não há líderes ou direção centralizada, não há rigorosamente um grupo, não no sentido de algo que se organiza e permanece. Os Black Blocs surgem da dispersão e voltam à dispersão.

Agora: alguns dos indivíduos que participaram desses flash mobs, provavelmente os mais politizados entre eles, serviram de fonte a jornalistas. Esses, sim, definiram a prática dos Black Blocs. À Carta Capital, foram citados como “estratégia”, “performance”, “tática” – palavras que se referem à ação, a algo que ocorre em um tempo e em um lugar; substantivos com tempo verbal? Presente… De modo mais fundamental, são uma estética: “Nossa sociedade vive permeada por símbolos, e saber usá-los é essencial em qualquer demanda, seja ela política ou cultural. (…) Não se trata de depredar pelo simples prazer ou alegria de quebrar ou pichar coisas. Trata-se de atacar o símbolo que existe representado naquele local ou objeto físico”.

Causando, sendo fatos incontornáveis, os Black Blocs enfaticamente demandam reações. A sua falta, ou supressão, de “identidade” tem três efeitos.

O segundo e o terceiro são determinados pela forma desse tipo de ação direta e suas consequências: de um lado, os que veem nos atos de violência um potencial criativo; de outro, os que subsomem essas atitudes no conceito mais genérico de “vandalismo”.

O primeiro deriva de seu estado anônimo: ou a crítica não chega a julgar o que fazem e ataca a partir de um princípio – por cobrir o rosto, se tornam criminosos automáticos – ou tenta lhes dar uma face à força. Não discutimos se são ou não “legítimos” – não é essa a pauta aqui -, nos interessamos pela sua potência enquanto meio e mensagem simultâneos (para lembrar McLuhan…).

Enquanto mídia, como agem/agiram sobre nós? Que é que somos obrigados a ver, pensar, discutir, fazer?

Somos obrigados a atirar conclusões ao vácuo. Todas essas interpretações acima – abertura criativa, mera destruição, licenciosidade -, elas valem o que? Não há substância: o Black Bloc de hoje não é o de ontem, que não é o de anteontem nem o de amanhã.Mesmo no interior das unidades provisórias que se formaram e vão se formar, a multiplicidade de intenções não pode ser evitada. (Anselm Jappe vaticina: “Talvez a violência só devesse encontrar-se nas mãos de pessoas sem ódio e sem ressentimento. Mas será isso possível?“.)

Nesse sentido, a ação direta que realizam perfila, comunica como nada mais um estado de crise. E a resposta a essa crise não consegue ser dada fabricando razões ou atribuindo culpas: não é um caso social. Em que ponto o anônimo é, não uma máscara, porém o rosto rascunhado do social? – assim sendo, sabemos pelo menos que o social tem olhos verdes

O Eixo

O Mídia Ninja ganhou celebridade em junho por ter se tornado uma fonte de pé na rua e em tempo real do que ocorria nos protestos. Os repórteres (sim, repórteres) produziam conteúdo (vídeos, fotos, tuítes), a informação corria pelas redes sociais, construindo um espaço público multifacetado e vibrante.

A massa de dados também gerava símbolos: foi através da câmera dos ninjas que assisti ao totem comemorativo da Copa do Mundo, no cruzamento da Paulista com a Consolação, propriedade publicitária da Coca-Cola, ser queimado. E, logo depois, ao par de rapazes chorando no meio-fio, pois que aquilo não era pelo que tinham vindo lutar, sentiam que seu protesto tinha perdido algo de dignidade. (Terceiro símbolo: o choque do simultâneo desses dois acontecimentos…)

Também: a Augusta enevoada de gás lacrimogêneo, as pessoas fugindo, depois se reajuntando. Então, um encontro com a Tropa de Choque. “Se a gente não for contra eles, não tem por que ir contra nós, aqui é todo mundo junto, tá todo mundo com a mão pro alto, é por um país melhor.” Os policiais não se movem; os manifestantes passam.

A existência desse grupo, mesmo que desconsiderando todo entusiasmo, implicava em alguns remanejamentos, sendo o mais evidente aquele pertinente à situação do jornalismo (Eliane Brum tratou do tema na coluna “Heróis e Vilões não Cabem na Reportagem“). Avancemos no tempo, porém.

A popularidade levou o Mídia Ninja ao programa Roda Viva – e adicionou um personagem “novo” à história: Pablo Capilé, figura proeminente da rede Fora do Eixo. Foi esse o ponto em que a percepção social foi deslocada, em que o eixo do debate mudou de posição. Outro jornalismo, cobertura dos protestos, narrativas parciais que se unem, o avanço técnico que torna consumidores em produtores, prosumidores – isto tudo foi jogado violentamente para segundo, terceiro, quarto planos.

O Fora do Eixo e Capilé se transformaram menos pauta e mais alvo: depoimentos e reportagens os acusaram de improbidade, estelionato, fanatismo, obscurantismo, assédio moral e dependência ideológica. Contra o bombardeio, outra porção de textos, entrevistas, notas oficiais (acesse aqui um apanhado do, digamos, conflito). De onde veio a energia para tamanha e tão difundida reação adversa ao FdoE?

Perdoem-me se não creio que tenha surgido apenas pelo mérito próprio da questão, ou pela vontade generalizada de esclarecer um assunto polêmico. Em uma, duas semanas após o Roda Viva, tínhamos um leaks do FdE; justo? Pode ser. Não obstante desconheço um site do gênero sobre qualquer empresa, partido ou, não sei, time de futebol no Brasil. Por que agora, por que com eles.

Trabalho escravo? O caso Zara não propiciou metade da balfúrdia. Líder messiânico e autoritário? Esse parece ser o perfil de Steve Jobs e o lado negro da Apple, mas quem liga? Os funcionários são expostos a situações vexatórias? Era o caso, em 2011, de 66% dos bancários.

Sua ligação com grupos de interesse influencia suas ações? Ora, Natan Donadon foi absolvido na Câmara, apesar do Supremo Tribunal Federal, por alinhamento da bancada evangélica, e os linchadores de Twitter trabalharam pelo que, dez minutos?

Não estou dizendo que as pessoas têm de se interessar por tudo ou se interessar por nada. Minha intenção, no entanto, é fazer ver que há mais peças no tabuleiro, em cada caso, de Reinaldo a Lino e Piero.

Entre outros possíveis, vejo dois estímulos para essa reação. Primeiro, oidealismo apolíticoas pessoas na sala de jantar pretendiam anjos nos ninjas, não certas pessoas com certas relações e certa vontade – não! era o Bem em curso, contra a PEC 37, e depois… e depois… – caíram por fim desse pedestal de pombo para ver que, como sempre, fazíamos política.

Segundo, o FdoE transmite a imagem de outro modelo de vida. Casa coletiva, compartilhamento de dinheiro e outros recursos, trabalho dedicado sem se enquadrar em algum “plano de carreira”, o uso de um vocabulário diferenciado para traduzir o mundo – tudo isto implica distância, dá vazão ao “nojo cultural”, questiona nosso próprio jeito de viver.

A imagem perfeita desse conflito me parece estar em uma cena do documentário Evoé! Retrato de um Antropófago. Silvio Santos encontra Zé Celso, diretor do Teatro Oficina. Silvio: “Se quer fazer, tem de ver se é possível fazer e o quanto custa”. Zé Celso: “E o desejo? Se tem desejo, faz”.

A Gravidade

O Movimento Passe Livre como que desencadeou a onda de protestos que marcou o País. Pôs na pauta nacional o transporte público; reabilitou o tema da passagem gratuita, livrando-o em boa parte da pecha de “ingênuo” ou “impraticável” (veja aqui um apanhado desse debate). Deu condições de possibilidade para a instauração de uma CPI em São Paulo e para o cancelamento da licitação de empresas de ônibus na cidade. E, parece até irrelevante, obteve seu objetivo único: a tarifa baixou de R$ 3,20 de volta a R$ 3 para os usuários paulistanos.

O estranhamento de alguns com o MPL se afastando das manifestações e/ou do protagonismo após a vitória (é esse o nome) só demonstra a incapacidade de perceber quais os aspectos fundamentais que fizeram as pretensões do grupo exequíveis. Esses aspectos são: havia um nome, uma face, uma mensagem. Espere; ressaltemos o essencial: havia um nome, uma face, uma mensagem.

Também chegou ao Roda Viva o MPL. Ao longo do programa, observamos em vários instantes o reforço da única ideia, aliado à fuga da personalização. Logo no começo: “A reivindicação das manifestações é bem clara: a gente está na rua contra o aumento”; pouco depois: “Que estão dispostos a negociar?” – “A gente está disposto a negociar a revogação do aumento da tarifa” – “E se não baixar?” – “A gente vai continuar nas ruas até que revoguem”.

No quarto bloco: “Eu queria que vocês falassem um pouco de vocês” – “A gente está aqui enquanto militante de um movimento social, acho que não cabe colocar as questões pessoais”. Essa retórica gera um resultado poderoso: não é possível dispersar as respostas frente a uma pergunta contida e concreta. Se, por outro lado, a narrativa que o MPL expunha recobria outras tantas tensões em gestação nas passeatas, ela possuiu, de todo modo, a capacidade de afiar o conjunto em um só gesto de poder. Forneceu-lhe um centro gravitacional, cuja atração cresceu e cresceu.

Há no parágrafo acima a pretensão de uma fórmula-panaceia para movimentos sociais? Penso que, ao menos, é certamente um assunto nuclear a comunicação das pautas. A dificuldade de comunicar a si e aos outros objetivos específicos pode tornar natimorto todo um esforço.

Um exemplo desse gênero de autoincompreensão é o vazio (quase) completo de protestos “contra corrupção”. Outro exemplo: recentemente, o secretário municipal de educação de São Paulo Cesar Callegari disse, em audiência pública sobre a renovação do modelo de escola pública da cidade: “‘Educação de qualidade’ é o quê? Que queremos? Que é qualidade?”. O concreto é uma situação de força. Palavras de ordem são instrumentos de organização; estabelecer ou destruir a concretude por trás delas é o verdadeiro jogo.

 

(Duanne Ribeiro é jornalista, analista de comunicação para o Itaú Cultural, editor-assistente e colunista do Digestivo Cultural, editor da revista Capitu, pós-graduado em gestão cultural e graduando em filosofia. Seu texto “Passe Livre, FdE e Black Blocs – enquanto mídia” foi publicado originalmente no Digestivo Cultural. Os itálicos no texto são do autor, e os negritos, destaques de FAROFAFÁ.)

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